Espelho
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Espelho
Alguém disse, uma vez, que explicar era a admissão de uma falha.
Alguém disse, uma vez, que eu precisava disso.
Começa por aquilo que você pode ver, mas não quer.
O rosto. Há muito tempo, você lembra com a ponta de seus dedos e a inspeção cuidadosa de seus olhos, nem dele você gostava – hoje, talvez, ele pareça tolerável. Talvez porque você já se acostumou com ele e esses traços que não conseguem lhe arrancar nem um comentário sobre arte ou poesia; talvez porque você não se importe o suficiente para notar naquilo que você menos gosta. De qualquer forma, você não sabe como descrevê-lo porque não lhe é necessário e você nunca pensou sobre isso – qual é o sentido em produzir palavras para aquilo que lhe é necessariamente fundamental? Qual é o propósito em buscar adjetivos para descrever o que você vê todos os dias, o que você toca todos os dias, o que já lhe pertence e não precisa de nomes?
Mas você começa assim: na criteriosa escala de seu gosto, absolutamente comum. Tudo é em grandes proporções nele, medidas alongadas, embora, no fim, não pareça uma mistura tão bizarra: lábios largos e grossos, que pouco sorriem – e quando sorriem, pouco se iluminam; queixo pequeno escondido por uma espessa barba desalinhada, que parece se harmonizar aos poucos com as demais linhas de seu rosto (tão exaustas, tão resignadas); os olhos são grandes e expressivos, mesmo que você se esforce para que seja exatamente o contrário – você se orgulharia se fossem frios, mesmo sabendo que você não é. Ah, quantas pessoas já não lhe disseram isso? “Dá pra ver nos seus olhos”, e você sabe que é verdade, porque você também pode ver. Por fim, o nariz. Não há nada demais nele, é o que você pensa. É só um nariz.
Depois vai ao corpo: ossos proeminentes, incômodos brotando na pele, languidez e hesitação nas pontas dos dedos. As mãos: médias, bonitas, de dedos tortos (que você, antes, detestava, mas aprendeu a apreciar). O fato de seu pulso pequeno e magro o assusta porque parece adequado que seja assim; é quase engraçado quando você pensa nos tendões marcados e nas veias visíveis demais – porque você nunca mostra as suas dores, embora elas estejam ali, espalhadas em preto e branco e azul e verde (e às vezes amarelo e vermelho e roxo) nos seus braços.
E então você termina com tudo o que não pode ver, mas precisa saber.
A sua instabilidade. É sempre a primeira coisa que vem à mente quando alguém precisa perguntar sobre a sua essência: instabilidade. Dinâmica. Aleatoriedade. Caos. Você quer muito e no momento seguinte não quer mais; você ama muito e, no momento seguinte, indiferença. Outro problema é o seu desinteresse insistente sobre as coisas que o afetam, essa sua mania de tentar racionalizar primeiro e sentir depois. É isso o que você sempre diz: que se debruça sobre as coisas e as pessoas como se elas fossem um curioso quebra-cabeça, um padrão a ser debatido, um argumento, uma música. Se você não estiver pensando, você não sabe como concebê-las – e se você não souber concebê-las, você não faz ideia de como pode prosseguir.
Outro defeito: sua incapacidade de manter suas opiniões pra você mesmo, quando elas não precisam ser ditas (quantas vezes você já machucou?); e sua incapacidade de emitir sua opinião quando ela é requisitada (quantas vezes você não decidiu?). Ou melhor, sua incapacidade de conciliar sua necessidade de descobrir, balancear, computar, com sua necessidade de ser. Mas existem coisas boas nisso, você imagina: pelo menos as pessoas sempre saberão que você está sendo franco, autêntico. Honesto e limpo. Sim – você gosta de se orgulhar por ser verdadeiro sempre, ainda que vá machucar. Ainda que vá afastar. Ainda que vá fazê-lo se sentir menor (mesmo que você nunca tenha se sentido grande).
E então chega às suas decisões; à forma como compreende a realidade e age em cima dela. Não pode ainda compreender a vida, sabe disso: derruba o assunto, olha para outro lado, procura outra obsessão com essa têmpera fria e com essa melancolia estática. Está tudo bem, você quer dizer a si mesmo, segurando as suas próprias mãos como faria se fosse outra pessoa (desse jeito que muitos já descreveram como “sincero e reconfortante”). As pedras no caminho não são pedras no caminho porque o tempo não está pronto, e as pedras no caminho não são pedras no caminho – porque a pedra caindo dentro de você ainda não atingiu o fundo. Mas ela ecoa, ecoa, ecoa.
Alguém disse, uma vez, que eu precisava disso.
Começa por aquilo que você pode ver, mas não quer.
O rosto. Há muito tempo, você lembra com a ponta de seus dedos e a inspeção cuidadosa de seus olhos, nem dele você gostava – hoje, talvez, ele pareça tolerável. Talvez porque você já se acostumou com ele e esses traços que não conseguem lhe arrancar nem um comentário sobre arte ou poesia; talvez porque você não se importe o suficiente para notar naquilo que você menos gosta. De qualquer forma, você não sabe como descrevê-lo porque não lhe é necessário e você nunca pensou sobre isso – qual é o sentido em produzir palavras para aquilo que lhe é necessariamente fundamental? Qual é o propósito em buscar adjetivos para descrever o que você vê todos os dias, o que você toca todos os dias, o que já lhe pertence e não precisa de nomes?
Mas você começa assim: na criteriosa escala de seu gosto, absolutamente comum. Tudo é em grandes proporções nele, medidas alongadas, embora, no fim, não pareça uma mistura tão bizarra: lábios largos e grossos, que pouco sorriem – e quando sorriem, pouco se iluminam; queixo pequeno escondido por uma espessa barba desalinhada, que parece se harmonizar aos poucos com as demais linhas de seu rosto (tão exaustas, tão resignadas); os olhos são grandes e expressivos, mesmo que você se esforce para que seja exatamente o contrário – você se orgulharia se fossem frios, mesmo sabendo que você não é. Ah, quantas pessoas já não lhe disseram isso? “Dá pra ver nos seus olhos”, e você sabe que é verdade, porque você também pode ver. Por fim, o nariz. Não há nada demais nele, é o que você pensa. É só um nariz.
Depois vai ao corpo: ossos proeminentes, incômodos brotando na pele, languidez e hesitação nas pontas dos dedos. As mãos: médias, bonitas, de dedos tortos (que você, antes, detestava, mas aprendeu a apreciar). O fato de seu pulso pequeno e magro o assusta porque parece adequado que seja assim; é quase engraçado quando você pensa nos tendões marcados e nas veias visíveis demais – porque você nunca mostra as suas dores, embora elas estejam ali, espalhadas em preto e branco e azul e verde (e às vezes amarelo e vermelho e roxo) nos seus braços.
E então você termina com tudo o que não pode ver, mas precisa saber.
A sua instabilidade. É sempre a primeira coisa que vem à mente quando alguém precisa perguntar sobre a sua essência: instabilidade. Dinâmica. Aleatoriedade. Caos. Você quer muito e no momento seguinte não quer mais; você ama muito e, no momento seguinte, indiferença. Outro problema é o seu desinteresse insistente sobre as coisas que o afetam, essa sua mania de tentar racionalizar primeiro e sentir depois. É isso o que você sempre diz: que se debruça sobre as coisas e as pessoas como se elas fossem um curioso quebra-cabeça, um padrão a ser debatido, um argumento, uma música. Se você não estiver pensando, você não sabe como concebê-las – e se você não souber concebê-las, você não faz ideia de como pode prosseguir.
Outro defeito: sua incapacidade de manter suas opiniões pra você mesmo, quando elas não precisam ser ditas (quantas vezes você já machucou?); e sua incapacidade de emitir sua opinião quando ela é requisitada (quantas vezes você não decidiu?). Ou melhor, sua incapacidade de conciliar sua necessidade de descobrir, balancear, computar, com sua necessidade de ser. Mas existem coisas boas nisso, você imagina: pelo menos as pessoas sempre saberão que você está sendo franco, autêntico. Honesto e limpo. Sim – você gosta de se orgulhar por ser verdadeiro sempre, ainda que vá machucar. Ainda que vá afastar. Ainda que vá fazê-lo se sentir menor (mesmo que você nunca tenha se sentido grande).
E então chega às suas decisões; à forma como compreende a realidade e age em cima dela. Não pode ainda compreender a vida, sabe disso: derruba o assunto, olha para outro lado, procura outra obsessão com essa têmpera fria e com essa melancolia estática. Está tudo bem, você quer dizer a si mesmo, segurando as suas próprias mãos como faria se fosse outra pessoa (desse jeito que muitos já descreveram como “sincero e reconfortante”). As pedras no caminho não são pedras no caminho porque o tempo não está pronto, e as pedras no caminho não são pedras no caminho – porque a pedra caindo dentro de você ainda não atingiu o fundo. Mas ela ecoa, ecoa, ecoa.
Neoshadow- Furious Witch
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Re: Espelho
Uma qualidade: a habilidade com as palavras.
Me impressiona sempre. Que autoanálise, Neo!
Será que se você fizesse aqueles testes de personalidade (como o que fiz ontem no Face) sairia algo parecido?
Me impressiona sempre. Que autoanálise, Neo!
Será que se você fizesse aqueles testes de personalidade (como o que fiz ontem no Face) sairia algo parecido?
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