As Cachoeiras Paradisíacas dos Domínios de Wushu II

Próximas à cidade de Wushu, essas belas cachoeiras servem como local de treinamento e descanso para os guerreiros.

Hatsuko sabia que haviam chegado quando sentiu a brisa molhada que vinha das cachoeiras. Tudo que os cercava era tranquilo, poético e paradisíaco. Borboletas voavam sobre as folhas e o calor do sol do fim de tarde ainda podia ser sentido naquele local belo e isolado. Não muito longe dali havia uma construção em estilo tradicional do Povo Celestial. Em volta da casa (que mais parecia um templo) havia muitas cerejeiras que derramavam suas flores rosadas sobre o telhado de madeira.

Myul soltou Hatsuko aos poucos e olhou-a nos olhos.

- Ficaremos ali. Seja bem vinda à minha casa.

Hatsuko olhou espantada para o mundo ao seu redor.

Tão lindo... E tranquilo... - ela pensou, enquanto a suave brisa de verão balançava-lhe as madeixas verdes de seu cabelo.

- É um lugar realmente belo... Mas você mora aqui? - perguntou, surpresa - Se eu morasse num lugar como esse, acho que nunca sairia daqui - ela fechou os olhos, pra poder sentir aquele lugar na alma.

- Eu não moro aqui, mas aqui é minha casa. - respondeu ele de forma enigmática. - Bromithia é o lugar onde eu costumo ficar, lá também é bem tranquilo... e solitário.

Myul começou a caminhar em direção à morada.

- Venha. Você deve estar com fome, não? Eu estou.

A lua começava aos poucos a aparecer no céu.

Hatsuko achou melhor não perguntar mais nada, uma hora, ela descobriria sozinha ou ele a contaria todos os mistérios que os rodeavam.

- Sim, estou - disse, sorrindo gentilmente e o seguiu para dentro da casa.

A cozinha era ligada à sala de estar por um balcão e alguns degraus de madeira que dividiam as duas áreas. A cozinha ficava mais acima e Myul pediu que Hatsuko se acomodasse em uma das poltronas enquanto ele preparava alguma coisa com os frutos celestiais que estavam armazenados no armário.

Hatsuko notou que todos os quadros da sala retratavam a mesma mulher, uma jovem muito bela de grandes cabelos loiros.

Hatsuko observou todas as fotos enquanto Myul preparava a comida. Muito curiosa, resolveu perguntar ao rapaz:

- Quem é essa moça bonita? Sua namorada?

Myul abriu um largo sorriso.

- Está com ciúmes? - perguntou ele desdenhosamente enquanto cortava um tomate roxo com uma faca.

- E-eu? Claro que não! - disse, entrando na defensiva - Foi só uma pergunta inocente. Pra te conhecer um pouco mais.

Myul riu maliciosamente.

- Venha, a comida está pronta.

Ele levou tigelas e talheres até a mesa de madeira da cozinha. Hatsuko sentiu um cheiro muito gostoso invadir suas narinas.

- Ei, não ria assim de mim - resmungou, encabulada.

Hatsuko sentou-se na mesa e começou a comer. A comida era incrivelmente gostosa, como ela nunca havia comido antes.

- Que delicia! - exclamou, sorrindo - Nunca provei algo tão bom!

Myul continuava sorrindo discretamente. O jeito atrapalhado de Hatsuko lhe agradava.

- É minha irmã. - disse ele usando os talheres para cortar os frutos e legumes, em seguida levando-os à boca. - Ela foi morta pelo Rei Celestial.

Havia um retrato da moça loira sobre a mesa, Myul o observou enquanto mastigava.

Aquilo a surpreendeu. Parou de comer e olhou pra Myul, com pesar e compaixão.

- Eu sinto muito - conseguiu dizer, meio embolada, mas sendo sincera - Não posso imaginar sua dor.

Uma memória surgiu. Sua mãe morta, com a alma sendo levada pelo pai.

Mãe... Mamãe...

- Não posso imaginar...

- Creio que possa sim. - disse ele olhando para ela. - Dá pra ver em seus olhos que você ainda sangra por dentro por causa de alguma coisa...

Myul enfiou na boca um pedaço de batata temperada com ervas celestiais.

- Conte-me mais sobre a dor que sente.

- Não quero te aborrecer com bobagens - murmurou - Não é nada de importante...

Ela fez uma longa pausa e encarou a comida. Mesmo com tanta fome, temia que podia vomitar se comesse um próximo bocado muito rápido.

- O passado deve continuar no passado - queria chorar, pois nem mesmo ela acreditava nessa afirmação.

Myul deslizou a mão sobre a madeira da mesa até alcançar a mão de Hatsuko. Segurou-a.

- Confie em mim.

Ela assustou-se com o súbito toque. Sentiu o rosto queimar.

- Minha mãe... Eu a matei - suspirei - Na verdade, foi uma tuberculose, mas... Ela já estava morta muito antes disso. Por minha culpa.

Fez uma pausa, encarando aqueles profundos olhos vermelhos de Myul.

Tão bonito... - pensou, num súbito devaneio.

- Estava morta a partir do momento que se deitou com o demônio, o meu pai - aquele peso parecia prestes a esmagá-la - Estava morta quando deu a luz a mim. Estava morta quando incendiei a casa em que morávamos. Estava igualmente morta quando enlouqueceu... Me pergunto se algum dia, ela realmente viveu...

Por favor, por favor, me abrace... - tudo o seu ser sussurrava.

- Sinto muito. - o guardião da Bromithia enfiou um pedaço grande de comida na boca, não sabia o que falar para consolar aquela garota.

Hatsuko sentiu alguém abraçar-lhe pelas costas, mas esse alguém não era Myul, era seu pai.



- Filha... - sussurrou ele ao ouvido dela.

À volta deles não havia nenhuma mesa, cadeira ou cachoeiras, era tudo completa escuridão.

Hatsuko permaneceu parada, chocada demais pra falar, reagir ou qualquer coisa do tipo.

Mãe... Essa pessoa... - pensou - Filha, ele disse filha.

Bruscamente, ela desvencilhou-se dos braços daquele homem. Se é que podia chamá-lo de homem. Demônio seria muito mais correto. Encarou o homem, depois procurou ao redor, tentando achar uma arma pra defender-se. Não havia nada além de um lugar negro, aliás, muito mais do que negro. Era tão escuro que até o azeviche sentiria inveja, ou a noite mais terrível e sombria.

- O que está fazendo aqui? - gritou, com os olhos cheios de lágrimas - Isso é um jogo para você?

- Estou aqui para proteger-lhe. - disse ele de forma cândida. - Não precisa ter medo de mim, pois nem tudo é o que parece.

Em torno deles um chão de pedra negro cortado por rachaduras incandescentes apareceu, nos céus agora havia um céu vermelho e ao longe estavam erguidas torres sombrias e ameaçadoras.

- Essa é a minha casa, filha.

Faee tocou o rosto de Hatsuko.

- Eu nunca lhe farei nada de mau.

Hatsuko recuou com o toque do pai. Pai... Ela odiava pensar nele assim.

- Proteger-me? - disse, tentando manter certa distância - Do quê?

Você nunca se importou... Por que agora? - sua cabeça latejava.

- E quem foi que disse que eu nunca me importei? - Hatsuko soube que ele podia ler os pensamentos dela. - Fui eu quem lhe dei o Crânio de Cristal, Hatsuko, essa é a maior prova de amor que eu tenho.

À volta deles começaram a voar faíscas e uma nuvem de chamas explodiu nos céus.

- O Crânio acabou sendo entregue a você antes do tempo, por isso causou tantos problemas. Você sabe o que aquele Crânio significa, Hatsuko?

Ele apontou para uma das torres negras.

- Tudo isso pertence à você. O Crânio é sua coroa. Agora meu pai está morto e eu sou o Rei do Terceiro Inferno. Você, Hatsuko, é a princesa.

Faee abriu os braços e um dragão apareceu em meio ao fogo incandescente das crateras.


- Ele se chama Mastema e é todo seu.

O dragão demoníaco urrou assustadoramente para Hatsuko.

Hatsuko recuou com o grito do imenso dragão incandescente, presente do pai. Era tão lindo e ao mesmo tempo, assustador... Como uma doce armadilha. Uma doce armadilha que se fechava em volta dela.

Um dragão... Para mim?

- Eu...? - disse, chocada - Uma princesa...? Mas... Mas... E a minha Casa, os meus amigos...?

Ela engasgou com o ar quente e a saliva, começou a tossir procurando ar. Tudo estava sendo demais para ela. Sentia seu peito em fogo, o coração batia tão rápido que parecia que arrebentaria no peito. Depois de uma longa crise de tosse, lufadas de ar entraram por seu pulmão e ela começou a melhorar. Respirou fundo várias vezes antes de conseguir falar, mas quando abriu a boca pela primeira vez, sentiu o gosto de sangue. Tinha mordido a língua. Depois de voltar a quase pleno controle do corpo e da mente, perguntou, desafiadora:

- Por que eu? - cerrou os punhos - Por que escolheu justo alguém miserável como eu?

Faee ficou visivelmente irritado.

- Jamais se refira à si mesma dessa maneira, Hatsuko! Você é a Princesa do Terceiro Inferno, daqui em diante não faz mais sentido continuar agindo como uma garota tola. Você tem o inferno todo para servir-lhe.

Ele estalou o dedo e mãos demoníacas começaram a sair de dentro das crateras.

- Você é minha única filha, por isso é a princesa. Honre o nome de sua família e aja de acordo com sua linhagem.

Doze homens musculosos e de boa aparência emergiram das chamas. Eles não vestiam camisas, apenas calças negras e botas de couro. Todos possuíam um chifre e seus olhos eram vermelhos.

- Ajoelhem-se diante à princesa.

Os homens obedeceram às ordens de Faee.

- À partir de agora, Hatsuko, esses doze homens realizarão todos os seus desejos e farão todas as suas vontades.

Hatsuko não sabia o que fazer, como reagir. Aqueles homens, ou melhor, demônios, curvando-se diante de alguém como ela...

- Não sei o que fazer - disse, ignorando a irritação do pai - Nunca tive sonhos de poder...

Ela enlaçou as mãos, respirou fundo e disse:

- Não posso voltar ao mundo humano novamente? - só de pensar naquilo, ela ficava em agonia.

Mesmo que seja para me despedir de todos... Gostaria de vê-los mais uma vez... Lutrael, Lief e... Myul... Ah, Myul...