As Cachoeiras Paradisíacas dos Domínios de Wushu II

- Mas é claro que pode, sempre que você quiser.

Faee colocou um cordão de pingente âmbar no pescoço de sua filha.

- Esse pingente abre um portal para este plano. Você pode ir e vir sempre que sentir vontade.

O rei demônio encarou Hatsuko seriamente.

- A única coisa que você não pode é destruir o Crânio, pois ele é sua coroa. Você não precisa mais da Casa Valentine agora que tem tudo em suas mãos.

Labaredas subiram pelas crateras incandescentes.

- E quanto a eles? - disse, olhando de soslaio para os demônios e o dragão - Vão ficar comigo ou posso chamar por eles quando precisar?

- Eles pertencem a esse mundo e estarão na torre para lhe oferecerem todos os confortos. Podem até te acompanhar pelos passeios no Terceiro Inferno, mas não podem sair daqui, pois não possuem alma, foram criados apenas para lhe servir.

Faee se virou e começou a andar em direção à torre negra.

- Você pode vir, se quiser, mas creio que ainda tenha assuntos na Terra do Exílio que não foram resolvidos, então, caso queira, pode ir embora também. Apenas não se esqueça do que eu lhe falei. Jamais destrua o Crânio e nunca mais aja como se fosse uma garota tola. Você é forte, faça com que eu me orgulhe de ser seu pai.

Hatsuko ficou em silêncio, observando o pai se afastar. Podia ter seguido ele, perguntado por mais coisas, mas atualmente, ela sabia que por enquanto, era tudo o que ousava perguntar. E também, gostaria de voltar para Myul.

Bem... Agora, preciso usar o pingente pra voltar - pensou, apertando o âmbar entre os pálidos dedos.

- Desejo voltar as Cachoeiras - disse, quase sussurrando - Voltar para Myul - essa última parte não foi mais que um suspiro de voz, não queria que ouvissem.

Myul ainda segurava a mão de Hatsuko, sem saber o que falar para consolá-la, quando notou que aquela situação já estava ficando embaraçosa, soltou a mão da sulfure e voltou a comer.

A feiticeira notou que não havia nada de diferente na feição dele, era como se Myul simplesmente não tivesse visto nada do que havia acabado de acontecer com ela, como se nunca nada tivesse realmente acontecido.

Mas Hatsuko podia sentir o colar do pingente âmbar em seu pescoço.

Resolveu não tocar no assunto. Não queria assustar Myul e afastá-lo dela ou mesmo machucá-lo. Forçou-se a comer, mesmo tendo perdido completamente a fome, pois não queria fazer desfeita.

- Você não liga de ficar perto de mim depois de ouvir a história que contei? - perguntou, quando terminou de comer, quebrando o silêncio.

- Na verdade não... - respondeu ele despreocupadamente enquanto dava uma garfada num dos legumes. - Minha única preocupação é a faca, temo que meu companheiro esteja passando por maus bocados. Espero que você consiga recebe-la o mais rápido possível.

Ele encarou-a seriamente enquanto mastigava.

- Sim - disse - Nossa relação é apenas negócios, entendo - completou, assumindo um tom frio.

Não destrua o crânio - uma voz sussurrava na mente dela.

Ela ficou assustada. Como ajudaria Myul sem destruir o crânio? Percebeu que teria que fazer o que achava melhor.

Ao escutar as palavras dela, Myul deu um sorriso e mordeu o último pedaço de tomate que se encontrava em seu prato.

- Você não precisa lembrar isso a si mesma o tempo todo. - disse ele com um tom levemente debochado. - Eu sei que você quer que nossa relação seja mais que isso, mas...

Ele a olhou de cima a baixo.

- Acho que você é muito menininha pra mim.

Myul se levantou da mesa e começou a recolher os talheres e pratos.

- Eu não quero - gritou, levantando-se bruscamente e com isso, derrubando a cadeira - Não zombe de mim!

E foi em direção a sala, pisando fundo e deixando Myul lá, com seus pratos e talheres.

Myul começou a rir, mas estava levemente preocupado com a reação histérica da garota.

- Ei, eu só estava brincando. - ele surgiu bem à frente dela em meio à uma nuvem de fumaça. - É meio difícil você correr de alguém que tem a magia de teletransporte.

Ele sorriu gentilmente.

- Não fique brava comigo. - Myul tocou o rosto dela, ainda sorrindo. - Você é muito bonita, não precisa ser sempre tão insegura.

Hatsuko empurrou a mão dele que tocava seu rosto. Queria dar um soco na cara dele, de tão furiosa que estava.

- Apenas negócios - disse, mantendo uma distancia - E não estava fugindo. Pare de ser tão irritante.

Ela cruzou os braços e ficou encarando Myul em silêncio por alguns instante. Mentalmente, ela contava até 10 pra não socá-lo. Revirou os olhos e finalmente perguntou:

- Tem material pra pintura? Gostaria de desenhar algo, faz tempo que não pinto nada e estou meio enferrujada.

Spoiler:

- Uau, então você ficou brava mesmo... - ele parecia incrédulo. - Não sabia que você era do tipo sentimental... - Myul coçou a cabeça e caminhou em direção ao quarto. - Bem, a noite já chegou e deve estar bem frio lá fora, e eu não tenho nada de pintura aqui. Se você quiser fugir de mim, tudo bem, mas se quer passar uma noite tranquila e segura, por favor entre.

Ele abriu a porta do quarto e fez sinal para que ela entrasse.

- Não sou sentimental, só não gosto de ser provocada - disse, sem mover-se do lugar.

Ele abusa demais da sorte. Eu podia muito bem deixá-lo e não ajudar ao seu mestre. Devem ser amantes pra ele se preocupar tanto - pensou, sendo tomada pelo sentimento de zombaria - Dois homens morando sozinhos numa mansão escondida, mestre e servo - ela quase riu.

- Bem, não sou louca o suficiente pra sair correndo no meio da noite num lugar desconhecido só porque você quer - concluiu, por fim, e segui-o em direção ao quarto, entrando quando ele gesticulou.

Pena eu não ter a cara de pau de Lief pra zombar em voz alta, mas um dia, ainda o farei.

- Tenho más notícias pra você. - disse Myul ao fechar a porta atrás dos dois. - Eu moro sozinho há muito tempo, a única cama disponível é essa que você pode ver...

Ele indicou a cama de solteiro que parecia um tanto bagunçada, assim como o resto do quarto. Hatsuko pôde observar a bela paisagem noturna através da janela, que dava direto para as cachoeiras. Grilos cantavam lá fora e vagalumes voavam tranquilamente.

- Eu não quero que você fique brava comigo, oras, eu realmente preciso muito de você e preciso fazer de tudo para merecer a sua ajuda. Sem contar que seria muito estranho ter que me deitar junto com alguém que não gosta de mim. Então acho que lhe devo isso...

O feiticeiro caminhou até o outro lado do quarto, procurou por alguns segundos algo dentro de uma das gavetas de madeira e de lá retirou uma caixa preta de veludo.

- Venha ver...

Ele abriu a caixa lentamente, dentro dela Hatsuko pôde ver um brilho dourado.

Ao notar que só havia uma cama, toda a sua barreira se quebrou. Ela enrubesceu novamente. Teria realmente se deitar-se ali, sozinha, com um completo desconhecido?

A-acho... Que está tudo bem... A-Afinal, ele é gay, certo...? - pensou, tentando manter o controle.

Quando Myul pegou a estranha caixa de veludo, seu lado curioso não aguentou. Hatsuko aproximou-se do rapaz, querendo saber o que tinha dentro dela.

- O que é isso? - perguntou, sem delongas.

- Isso é...

Myul deixou a caixa cair por entre seus dedos. Seus olhos vermelhos se tornaram completamente brancos e ele caiu de joelhos, pressionando a cabeça com as mãos como se sofresse um repentino tormento. Estava tendo A Visão, assim como Hatsuko.

A jóia delicada rolou por sobre o chão de madeira, indo parar sobre os pés da sulfure. Era um belo colar dourado com pingente cristalino de coração. O cristal tinha diversas cores, como o arco íris.

- V-você está vendo, Hatsuko? - Myul ainda estava ajoelhado ao chão. - Você está vendo o que está acontecendo?

As imagens da guerra infestaram as mente dos feiticeiros.

O "golpe" que aquelas visões causou em Hatsuko foi tão violento que ela não percebeu a jóia caída aos seus pés. Engasgou-se tão violentamente que sentiu todo o ar escapar de seus pulmões e tropeçou, indo pra trás numa violência meio bêbada, seus pés formaram um nó e ela desabou.

Apertou as mãos contra a cabeça que latejava a cada batimento cardíaco dela, muito acelerado, uma das mil consequências das visões. Seus olhos que também haviam tornado-se brancos estavam tão arregalados que as órbitas pareciam que iam saltar pra fora, um olhar insano, terrível e distorcido. Tremia desde as pontas dos dedos dos pés até o último fio de cabelo que ela, involuntariamente, puxava.

- M-Myul... - gritou, com uma voz rouca e repleta de insanidade - Myul, nós estamos perdidos - dos olhos arregalados, caiam lágrimas quentes que pareciam corroer a face da sulfure.

- Shhh... - Myul tocou os cabelos de Hatsuko, procurando acalmá-la. - Vai ficar tudo bem... - falou ele com uma voz tranquila enquanto a pegava nos braços para colocá-la na cama.

Quando o corpo de Hatsuko, cansado por conta de muitas longas viagens, sentiram aqueles lençóis macios, uma paz e conforto inimagináveis inundaram sua alma. Myul olhava para ela e seu semblante era forte, protetor.

- Teremos muito tempo para discutir sobre isso amanhã...

Ela viu a face dele se afastar, misturando-se às sombras do quarto. Myul cruzou todo o aposento e aconchegou-se ao chão, bem ao lado da porta. A sulfure notou que ele deixara a espada bem ao alcance da mão, apoiando o peso do corpo sobre o outro braço que servia-lhe de travesseiro.

A lua cheia brilhava no céu azul ao lado de fora e seus raios de luz prateados caíam sobre ambos.

- Myul - chamou, em meio a escuridão - Vai deitar nesse chão frio? - seu tom era preocupado.

Ela sentou-se na cama, tão macia e acolhedora que fazia com que se sentisse culpada por deixá-lo dormir no chão duro e sozinho. Afinal, aquela casa era dele e ela era a intrusa. A visão que a esgotara, devia ter esgotado o rapaz também e, no fundo, ela precisava ser embalada pra conseguir dormir, apesar de cada centímetro do seu corpo doer.

Myul ainda se sentia um pouco culpado por ter sido rude com Hatsuko anteriormente, isso criou nele um conflito interno. Precisava estar bem para o dia seguinte, pois haveriam muitos desafios a serem enfrentados. O chão era realmente gelado e desconfortável, provavelmente o faria mal e o deixaria desgastado para a batalha. Não tinha razão para permanecer ali.

- Você tem razão, melhor será se estivermos bons amanhã. - ele levantou-se e caminhou até a cama, onde admirou Hatsuko por um tempo. Em seguida tirou o quimono negro que vestia, ficando apenas com as roupas de baixo (que eram brancas).

Myul se aconchegou à sulfure, cobrindo-se junto dela e inevitavelmente colando seus corpos. A garota sentiu os cabelos dele roçarem sua nuca, o rosto de Myul se encontrava sobre as costas de seu ombro e suas coxas logo se cruzaram, aquecendo-se naquela noite fria, cinzenta e estrelada.

- Boa noite, Myul - murmurou, meio corada com a proximidade do rapaz.

O corpo dele era tão quente que Hatsuko sentiu-se como se estivesse em casa novamente, ainda criança, antes de descobrir o que era, dormindo junto de sua mãe. Os músculos relaxaram, seus medos se dissiparam e ela começou a adormecer. Caiu num sono profundo, embalada pelos sentimentos que começaram a surgir.

Os fortes braços de Myul envolveram Hatsuko ternamente. Aquecidos um pelo outro, ambos adormeceram, mergulhando num lago cristalino de sonhos doces. A sulfure sonhou que se banhava completamente nua nas Cachoeiras Paradisíacas. Myul estava ali, bem ao lado dela, nadando sob as águas claras e límpidas. Vermithrax se aproximava deles, emergindo os pés na parte rasa do rio. Na mão dele brilhava a faca sob a luz do sol forte.



- S-senhorita Hatsuko?! A senhorita mudou muito! Oh, desculpe-me - Virou bruscamente - vista-se, por favor.

Hatsuko sabia que naquele sonho ela não era mais uma garota fraca, e sim a princesa poderosa dos infernos. Sabia também que era por isso que o meio-dragão a encarava com tanta surpresa.

- Velho companheiro - ela deu um sorriso para o meio-dragão - Dê-nos a faca e deixe-nos terminar o que começou.

Sua voz não parecia ser sua, nem seu corpo, nem nada. Era como se ela fosse um fantoche. Mas estava feliz por estar com Myul.

- Esse é o ponto senhorita Hatsuko. Bom, mas é um sonho, só preciso saber, para quê a faca? - Vermithrax começa a caminhar - Fui trazido aqui apenas seguindo instruções e não sei para quê vai servir, diga-me, para qual uso terá essa faca?