Shiki, O Cego Andarilho & O Casal na Neve - Parte 3

por Caladon Aerdor Qua Jun 20, 2012 10:57 pm

"Estava nos seguindo?" Indagou Cálion, com um misto de medo e suspeita na voz.

"Sim e não. Quando notei que ainda precisava de ajuda com o mapa, vocês já estavam longe demais para que eu pudesse segui-los. Mas sim, minha intenção era alcançá-los de alguma forma, e pelos deuses, veja como tive sorte!" Respondeu Shiki "Mas isso não é importante. Eu quero saber o que foi aquilo."

Cálion se calou. Desde que foram forçados a viajar por aquelas planícies, ninguém havia feito aquela pergunta. Todos os impulsos inversivos foram controlados, e foram raros os acidentes como os de hoje. Ela já estava começando a pensar que ninguém nunca descobriria nada, e que tudo daria certo...

"Meu filho foi amaldiçoado..." Começou Edgar.

"Querido!..."

"Não Cálion. Não há mal em dizê-lo. Shiki não parece ser o tipo de pessoa que vai tentar fazer algo de ruim contra nós caso contarmos nosso segredo. E mesmo se fosse, eu não poderia culpá-lo. Nós não poderíamos."

"Edgar está certo. Eu nunca faria mal a aqueles que me ajudaram." Mentiu Shiki, de forma sincera.

Cálion silenciou seus protestos.

"Está bem então, faça como quiser..." Disse ela, desistindo.

"Continue, por favor...."

"Bem... Como eu dizia, meu filho foi amaldiçoado. Dentro dele residem as almas de centenas de feras, todas vítimas de um grande incêndio que ocorreu séculos atrás. De acordo com a lenda de nossa família, o fogo durou sete dias e seis noites, cedendo apenas na sétima noite. A destruição foi incalculável, mas a verdadeira calamidade ainda estava por vir. Os espíritos daqueles que morreram queimados permaneciam ardendo na floresta, e espalhavam sua angústia por aquelas terras. Muitos anos se passaram até que um poderoso feiticeiro os selou em um cristal..."

"E esse cristal de alguma forma reside em seu filho?" Interrompeu Shiki.

Edgar hesitou.

"Não... O cristal se foi." Continuou ele, com a voz tremendo. "Eu o recebi anos atrás, junto com o dever de protegê-lo. Mas eu falhei, e agora os espíritos que residiam nele residem em meu filho. A cada dia, eles se tornam mais fortes, e assim que o frágil corpo do meu filho for capaz de suportá-los, eles tomarão conta."

"O que aconteceria com o hospedeiro, nesse caso?" Perguntou Shiki, dessa vez evitando mencionar a palavra "filho".

"O espírito dele se juntaria aos das feras, e ele também sentiria as chamas a queimá-lo por toda a eternidade."

Shiki respirou fundo e se aproximou. Mesmo com os olhos vendados, ele sabia que Edgar estava a chorar.

"Nesse caso..." Continuou Shiki, "Não seria melhor matar o hospedeiro em questão antes que ele tenha de sofrer tanto?"

O silêncio dominou. Cálion, que até então apenas escutara a conversa de cabeça baixa, levantou o rosto e fixou seus olhos em Shiki, pronta para matá-lo por suas palavas. Mas Edgar continuava calado, como se seu coração tivesse se tornado aço.

"Sim, esse parece ser o caso. Mas eu não posso permitir que meu filho morra antes de mim..."

"Planeja se matar antes?" Perguntou Shiki, sério.

"Não. Ou vou tomar a maldição para mim. É necessário que Shiki fique um pouco mais velho, pois a quantidade de sangue necessária para a transfusão dos espíritos é muito grande. Só me resta rezar para que esse momento chegue antes da inversão completa..."

Shiki assentiu, e tocou o rosto da criança. Mesmo naquele frio, sua pele macia parecia arder de febre.

"Bem... Isso foi menos interessante do que eu esperava." Concluiu Shiki, "Sem falar que você não me contou toda a história. Mas não tem problema, eu posso salvá-lo para você."

Num misto de raiva, euforia, tristeza e alegria, Edgar puxou Shiki repentinamente com as mãos e o ergueu pelo colarinho.

"Está falando a verdade?" Disse ele, com uma voz irreconhecível.

"Eu nunca mentiria a respeito de algo tão sério." Mentiu Shiki, de forma sincera.

Edgar o largou no chão e deitou o filho na neve.

"Faça. Mas se algo acontecer com ele, eu te mato."

"Me desculpe, Edgar..." Disse Shiki, abrindo um pequeno vão em sua venda e olhando fixamente para a criança deitada. "Mas você nunca conseguiria me matar."

E com uma velocidade vertiginosa, Shiki cravou sua faca.